União-vitoriense estuda o impacto das ruas na realização de sonhos
Qual a função de uma rua, uma avenida, uma ponte ou uma calçada? Obviamente, são inerentes à locomoção. O ir e vir proporcionado por elas é algo tão cotidiano que tendemos a não nos preocupar com essa questão, exceto em situações em que esse direito de descolamento nos é subtraído, seja por um buraco na pista, congestionamento, falta de ibilidade, ou outros inúmeros fatores. Mas, muito além das questões práticas, a mobilidade urbana também tem o poder de incentivar ou de atrapalhar nossas ambições.
Essa função jurídica e sociológica da locomoção foi o tema da tese de doutoramento do professor e advogado Fernando Perazzoli, intitulada “O Inverso de Babel: as ruas da cidade como vias para um direito emancipatório à cidade”. Sob orientação do Professor Doutor Giovanni Allegretti, o união-vitoriense analisou a mobilidade urbana de União da Vitória a partir de consultas teóricas e também de pesquisas presenciais na cidade entre 2014 e 2018, além da aplicação de questionário com quase 400 moradores. A tese foi apresentada em fevereiro à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em Portugal, instituição em que Fernando realizou o doutorado.
Pensar na mobilidade urbana como ferramenta de emancipação pode ser algo abstrato à primeira vista. Contudo, Fernando explica a ideia usando o dinheiro como ponto de referência. Como exemplo, um jovem que tenha intenção de cursar uma faculdade, mas seja impossibilitado pela falta de recursos financeiros. Mesma lógica se aplica a locomoção. “Eu não coloco o dinheiro na frente. Eu coloco a cidade. Eu tenho todo o dinheiro do mundo, mas eu não tenho como ir, não é possível, para mim, ir até o lugar porque eu não tenho transporte público. Não existe transporte público. Ou não existe via, ou não existe o”, comenta.
Em suma, o viés emancipatório da mobilidade urbana pode ser descrito como a possibilidade de, uma vez que se tenha o desejo de fazer algo, tais intenções não sejam impedidas por uma falta de infraestrutura. “Se você pegar, como exemplo, alguém que mora naquele distrito além do Rio Vermelho, que é o mais longe de União da Vitória, como que essa pessoa vai vir de lá todos os dias para fazer faculdade? Ela pode ter muito dinheiro para pagar o curso que ela quiser. Pode ser uma faculdade pública, privada, não interessa. Mas se não existir uma condição de mobilidade para ela, a vida dela não tem emancipação. Ela não vai conseguir sair de onde ela está e chegar onde ela quer conforme os desejos dela”.
União da Vitória em foco
O estudo da mobilidade urbana em grandes cidades é, segundo Fernando, algo corriqueiro. Entretanto, existe uma discrepância quando se trata do olhar para as cidades pequenas neste mesmo tema. Por essa razão, ele voltou sua atenção à cidade durante o doutorado, usando a terra natal como foco de pesquisa.
Para fins de análise, Fernando dividiu a cidade em três setores: o antigo pólo produtivo ligado principalmente ao setor madeireiro, correspondendo a região do bairro Rio D’areia; o distrito de São Cristóvão e, por fim, a área central, nela incluída também o centro de Porto União. Cada um desses três grupos revelou problemas próprios, mostrando que a percepção da cidade não é uniforme.
À época do estudo, os moradores do centro demonstraram maior atenção às vagas de estacionamento, sentido das ruas e lombadas. No distrito de São Cristóvão, as maiores preocupações eram a necessidade de atravessar a Ponte de Ferro – visto que durante a pesquisa a ponte José Richa ainda não havia sido inaugurada – o trânsito de bicicletas, e a grande distância entre o distrito e a área industrial de Porto União. E na região do bairro Rio D’areia, também com grande trânsito de bicicleta, os problemas citados foram o risco de assalto, perigo no retorno para casa e horários de ônibus. “Você percebe que são três formas de ver a cidade. Problemas num lugar, problemas no centro, problemas em outro lugar. Todos eles se interrelacionam para procurar soluções comuns”, comenta Fernando.
A pesquisa também revelou que os união-vitorienses entendem a importância da preservação do meio ambiente, mas que tendem a deixar essa questão de lado ante a necessidade da criação de novas vias ou pontes. Além disso, um fator corriqueiro nas respostas foi a percepção de que são os poderes públicos os maiores responsáveis pela conservação das vias. “[Existe a ideia de que] é a prefeitura que tem que arrumar, é o poder público que tem que arrumar. Tem mato [no acostamento]? Tem. Mas não sou eu, é o município que tem que vir aqui roçar. Eu acho que isso ficou muito claro. Logo, a responsabilidade, o peso cai no dirigente, qualquer que seja”.
Talvez uma das conclusões mais interessantes do estudo seja a percepção que a população têm sobre o que é a cidade. Fernando aponta que município é o limite territorial, enquanto que cidade engloba elementos culturais. Nesse sentido, o união-vitoriense enxerga a cidade para além dos limites com Porto União, compreendendo a parte central de ambas como uma coisa só. Em contrapartida, costumam chamar de cidade apenas a área central, sem levar em consideração as áreas periféricas. “A tese revelou que a cidade de União da Vitória é muito maior do que União da Vitória, tanto quanto a cidade de Porto União é muito maior do que o município de Porto União, e que eles se integram culturalmente enquanto cidade, não enquanto município. E aí a dificuldade de você ter dois entes, dois municípios, dois estados, um direito nacional e pessoas que veem a cidade para além das fronteiras do município, mas ao mesmo tempo menor do que o município”.
E as enchentes?
Tema corriqueiro em União da Vitória, as enchentes não apareceram como grande fator de impacto na mobilidade urbana durante a pesquisa. Fernando atuou no município no período da cheia de 2014, e a constatação que teve, a partir de relatos de moradores, foi de que muitos dos problemas de mobilidade que surgem nestes períodos são considerados espécies de efeitos colaterais indivisíveis das enchentes. Além disso, as preocupações tendem a se voltar para outros setores. “Nenhuma pessoa deixa de dizer que é uma desgraça, é uma desgraça para todo mundo. Só que no específico da mobilidade, ela fica em segundo plano, porque as atenções primeiras são economia, habitação, pessoas que não querem sair de casa, pessoas que não querem se mover para não perder coisas por saques das suas casas. Então a enchente força a não mobilidade. Você pega um cenário em que está tudo embaixo d’água e você percebe que o que as pessoas menos fazem é ficar se deslocando”.
Mas a população dos bairros mais afetados demonstraram estar preparada para se locomover, mesmo em períodos de enchente. “Vou citar, por exemplo, o bairro Navegantes. Muitas pessoas já têm botes e barcos em casa. É impressionante o tanto de botes que tem nas casas. Em algum lugar tem um bote, porque elas sabem que em algum momento elas vão ter que sair com aquilo e tirar as roupas, tirar as coisas de casa. Eu percebi muito isso. Diferente de pessoas que moram em bairros onde já não pega água tão fácil, que, se chegar, vai ter caminhão do Exército. É um outro discurso”, ressalta Fernando.
União da Vitória é emancipatória?
A pergunta que você pode estar se fazendo neste momento é: vivo em uma cidade emancipatória? A sua resposta dependerá da sua realidade. “Não existem respostas simples para problemas complexos. A cidade não é homogênea, ela não é igual, ela é diferente e isso tem que ser levado em consideração para fins dessa resposta”, indica Fernando. Pessoas com realidades diferentes terão visões diferentes sobre o mesmo assunto. Para uma pessoa que mora na área central, muito provavelmente a resposta será positiva. A conclusão para um morador de uma bairro mais afastado, entretanto, pode ser mais complexa. “União da Vitória avança, ou pelo menos avançava, à época da tese, em termos de emancipação a partir da mobilidade, com desafios setorizados em relação aos devidos contextos geográficos e populacionais da cidade”, completa.
A tese não apontou uma intencionalidade de retirar direitos por meio da mobilidade. Fernando cita o exemplo de Brasília, cidade em que reside atualmente. “Aqui, nós temos o Parque da cidade, que é maravilhoso para andar. Não existem linhas de ônibus que am dentro do Parque da Cidade para intencionalmente determinadas pessoas não irem lá. Isso é claro, histórico e acontece. Não é possível que com milhares de ônibus não tenha um que e por lá. Em União da Vitória, eu não vejo isso. Não vi isso e eu não teria nenhum pudor de dizer se tivesse visto. O que eu vi muito em União da Vitória ao longo do tempo é uma gestão difícil em razão dos poucos recursos da cidade”.
Para Fernando, levando em consideração todos os fatores, União da Vitória se encaminha para a emancipação. “Dadas as circunstâncias em que o município se encontra no quadro de IDH, no quadro orçamentário, no quadro regulatório brasileiro, ela sim, se encaminha para via de emancipação. Ou pelo menos de encontrar um direito à cidade emancipatório. Está pronto? Não. Tem muita coisa a ser feita e acredito que ainda hoje o tenha. E que não vai se resolver para amanhã, mas eu não vi, ao contrário dos outros municípios, um downgrade”.
Fernando cita, também, que a pesquisa demonstrou que a população de União da Vitória tende a participar de discussões públicas, e que isso gera maior possibilidade de emancipação. “É um potencial emancipatório falar de política. Se você tem um ônibus que não está funcionando, vai ter aquela sua companheira de ônibus, amiga de ônibus que vai falar: olha que porcaria. A coisa fomenta a partir da própria gestão da cidade, que é uma coisa que você não vê fora. Então, uma coisa que União da Vitória ensina é que a mobilidade pública é uma fomentadora de direito, ela cria direito. Eu quero e eu não quero. Eu vejo isso e eu não aceito”.
No decorrer da pesquisa, avanços foram feitos no município. Fernando, atuando durante a gestão de Luilson Schwartz junto à Secretaria de Indústria e Comércio de União da Vitória, participou do grupo responsável pela elaboração de projetos de mobilidade, como o calçamento em paver na avenida Manoel Ribas, elaboração da Lei Municipal de Mobilidade Urbana, e confecção de dois protocolos intermunicipais para gestão de serviços comuns aos municípios do Vale do Iguaçu. “Hoje, a Manoel Ribas é toda com paver direcional. Antes não era. Isso é uma das obras resultantes desse projeto, porque favorece a mobilidade. Foi esse espectro que a gente trouxe para União da Vitória. E, ao mesmo tempo, eu investigava como que isso aporta na vida das pessoas, qual que é a ideia delas, qual que é a perspectiva delas”.
Cronista de O Comércio
Entre estudo e trabalho, Fernando já ou pela Universidade do Contestado (UNC), UGV, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade de Coimbra (Portugal) e Universidade de Mumbai (Índia). Foi consultor da Fundação Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, Coordenador Jurídico na Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, em Brasília, e atualmente leciona a disciplina de Direito Constitucional no Centro Universitário Euroamericano (Unieuro), também em Brasília, além de trabalhar no Ministério Público do Estado de Goiás.
Porém, mesmo com tanta vivência fora daqui, Fernando nunca cortou as relações com a cidade. “É aquela questão de que uma vez que se bebe da água de União da Vitória você não não quer mais sair. Para mim acontece de uma outra forma, agora é um pouco virtual. Mas eu sou daqueles moradores que fica um ano sem chegar na cidade e quando chega reclama que a placa está torta. Quando eu morei na Europa, depois vim para Brasília, eu nunca deixei de ler sobre União da Vitória, até mesmo para dialogar com as pessoas, eu precisava saber o que estava acontecendo. Então, eu sempre me envolvi muito”.
Essa proximidade com União da Vitória será estreitada ainda mais a partir das páginas de O Comércio. Fernando ará a , nas próximas edições, uma coluna de crônicas neste semanário. A intenção do advogado é poder conversar com seus conterrâneos por meio de textos sobre o cotidiano escritos em tom leve. “Estou em Brasília e vou escrever para União da Vitória por quê? Porque eu gosto daí, porque eu tenho amor por União, gosto do pessoal e eu acho que pode ser uma forma de dialogar”.
O interesse de Fernando pelo gênero literário surgiu por intermédio da professora Fahena Porto Horbatiuk, que viu no advogado talento para a escrita de crônicas. “Foi ela que trouxe isso, e eu nunca deixei de ter isso na minha mente. E a crônica, pelo menos para mim, funciona quando ela é a mais ordinária possível. Como diz o Antônio Prata, ela tem que ser a primeira página de um jornal num dia e enrolar o peixe na feira sem nenhuma vergonha no dia seguinte. Ela tem que ser lida rápido, escrita rápida e ao mesmo tempo a vida continua assim. Ela não é um romance que você vai parar e vai fazer um café. A crônica você lê enquanto está esquentando a água. E eu quero escrever sobre cotidiano, sobre coisas simples, porque quanto mais ordinária é a crônica, mais difícil é de escrever”.
Voltar para matérias