Especial: Morre Capitão Kirk em Missão de Guerra
A região do Sul do Paraná e Norte de Santa Catarina é conhecida como o cenário da Guerra do Contestado. Tal evento ainda é pouco valorizado e expressado historicamente, embora tenha importância tão grande ou maior entre outros tantos conflitos sociais na história do Brasil.
Região estratégica do solo brasileiro, descoberta às margens do Rio Iguaçu como ponto de parada para as tropas que vinham do Rio Grande do Sul e seguiam para São Paulo, tornou-se porto para navegadores fluviais com suas mercadorias e, logo mais, o entroncamento ferroviário ligando o Sul ao restante do país.
A história registra que há 110 anos atrás, em 1º de março de 1915, pela primeira vez utilizou-se o avião em missão militar, o aviador tenente Ricardo João Kirk levantava voo da pista onde hoje é o Grupo Verde Vale de Comunicação, a Unespar, a Catedral de União da Vitória e a Rua Ipiranga, em direção do reduto de Santa Maria, vindo a sofrer o acidente no km 42 na antiga estrada de Palmas, hoje município de General Carneiro.
Importante é ressaltar que foi pela primeira vez que o Brasil usou avião para agir em combate. No intuito de expressar gratidão para as pessoas do ado e também honrar a história dos fatos que ocorreram na nossa região, deve-se fazer que esse acidente seja lembrado, registrado e celebrado no calendário oficial de datas comemorativas.
Para entender um pouco mais da inolvidável história, é preciso fazer como um piloto de avião e dar um rasante, em uma velocidade maior que o som, para garimpar em fontes férteis, e por conseguinte realizar uma leitura da conjuntura da época e se fazer uma analogia com a atualidade. Tais ações ajudam a provocar elucubrações científicas, possibilitando uma aproximação maior da verdade sobre a História da Aviação Militar no Brasil e no mundo.
Vamos dar mais um rasante no ado e garimpar alguns fatos de relevância nos primórdios da aviação. Alberto Santos Dumont, no dia 23 de outubro de 1906, realizou o primeiro e sonhado voo. O mundo ganhou um presente da dirigibilidade aérea. Grandes nações aram a fabricar aviões com o interesse do uso militar.
O tenente Ricardo João Kirk foi o primeiro Oficial Aviador do Exército Brasileiro, vitimado por um acidente aéreo quando pilotava o avião Morane Saulnier 80 HP Asa Baixa, batizado por ele de “Iguassú”. Kirk foi a primeira vítima fatal de acidente aéreo da América do Sul e do Brasil, entrando para a história ao utilizar pela primeira vez um avião no campo de batalha durante a Guerra do Contestado no Brasil, no período de 1912 a 1916.
O Brasil teve a oportunidade de a aviação chegar ao país por meio de Gastão de Almeida, em 1910, que realizou o primeiro voo em nossa terra, em um avião importado. O voo, a princípio, era um arriscado esporte, mas não intimidou os iradores brasileiros pela prática da aviação. No mesmo ano, era eleito presidente da República do Brasil o Marechal Hermes da Fonseca, irador e entusiasta do balonismo e de seu uso militar. Na Europa, teve oportunidade de observar apresentações de pilotos em manobras militares.
Em 1911, a empresa norte-americana, Queen Aviation Company Limited, sediada em Nova York, fez demonstrações aéreas na cidade do Rio de Janeiro, com seis aviões Blériot, um Nieuport e um Demoiselle, que registraram o maior sucesso do brasileiro, Alberto Santos Dumont, cujo projeto era livremente cedido a quem se interessasse por construí-lo. Na ocasião, diversos ases da aviação sa estavam presentes, entre eles Roland Garros.
Na Europa, os pilotos eram consagrados celebridades, aqui no Brasil a sua presença e simpatia contagiou os brasileiros pela aviação. O jornal carioca “A Noite”, comandado por Irineu Marinho, patrocinou diversas apresentações. Marinho idealizou e incentivou o Aeroclube Brasileiro.
As apresentações atraíram muitos militares, em especial, o tenente de infantaria do Exército, Ricardo João Kirk. Nascido em Campos, no Estado do Rio de Janeiro, em 1874, foi declarado alferes, em 1893, já que se matriculara na Escola Militar, em 1891, e fora promovido ao posto de primeiro tenente, em 1898. Ele fez seu primeiro voo a bordo de um Blériot pilotado pelo francês Roland Garros.
Depois do seu primeiro voo, Ricardo João Kirk ingressa na Escola de Aviação do Aeroclube Brasileiro, presidido pelo Pai da Aviação, Alberto Santos Dumont. Kirk recebeu os primeiros voos de instrução do piloto civil, o italiano Ernesto Darioli, que era uma lenda na Europa, ara pelo Brasil, fazendo demonstrações e participando de corridas aéreas.
Recebendo apoio do seu comandante e do pessoal do aeroclube, Ricardo Kirk foi para a França e cursou a École d’Aviation d’Ètampes, tendo recebido seu brevet em 22 de outubro de 1912, tornando-se, assim, o primeiro aviador militar do Exército brasileiro.
Em 12 de setembro de 1914, assumiu o comando da força federal o general Fernando Setembrino de Carvalho. No dia 16, solicitou ao Ministro da Guerra, general Vespasiano, que colocasse à sua disposição, o tenente Ricardo João Kirk. Acreditando nos novos métodos e incentivado pelo presidente da República, o comandante da XI Região Militar, o general Setembrino de Carvalho, tinha à sua disposição o tenente Kirk e seu instrutor, Ernesto Darioli, contratado pela União Federal, percebendo um conto de reis mensalmente, desde 22 de setembro de 1914. Criando uma esquadrilha de ataque aos revoltosos da Região Contestada, portanto foi na Campanha do Contestado que começou a viação militar no Brasil.
No dia 19 de setembro de 1914, um trem especial conduzindo tropas do 58º Batalhão de Caçadores, saiu do Rio de Janeiro, também embarcou e transportou em seus vagões cinco aeronaves: um Morane Saulnier, biplace com 16 metros de superfície, motor Le Rhône de 80 HP, capacidade de voo de sete horas, pintado de azul; um Morane Saulnier, monoplace com motor Gnôme de 50 HP; e um Blériot Sit, também com 16 metros de profundidade, biplace, capacidade para seis horas de voo, motor 80 HP, pintado de branco; um Morane Saulnier “Parasol” de 90 HP e um Morane Saulnier biplace de 60 HP.
No trajeto da viagem, fagulhas lançadas pela locomotiva atingiram um galão de gasolina armazenado em um dos vagões que transportavam as aeronaves desmontadas. O fogo rapidamente se alastrou, atingindo várias partes dos aviões, apenas um Morane Saulnier permaneceu em condições de voo. O trem especial, conduzindo todo o material e os aviadores, chegou a Porto União da Vitória, no dia 30 de setembro, estabelecendo seu quartel general.
A aviação precisa de uma infraestrutura mínima em terra, para seu pleno funcionamento. Já na zona de conflito, Kirk coordenou a construção das pistas e hangares. A pista foi construída juntamente com os três hangares, onde hoje é o centro de União da Vitória. Contou com soldados e a participação do Coronel Amazonas de Araújo Marcondes, poderoso chefe político do Vale do Iguaçu, ao custo de alguns contos de reis.
Para realizar a missão, ainda faltavam suprimentos de material bélico. Ricardo Kirk e Ernesto Darioli voltam ao Rio de Janeiro, para obter, na Fábrica de Cartuchos de Realengo, granadas de abuseiro de 10,5 cm, que foram transformadas em bombas especiais. Os pilotos acompanharam todo o processo de modificação das granadas, que, na parte posterior, foram reforçadas, para receber o choque da carga de projeção; foram cortados 10 milímetros, para obter um perfeito equilíbrio na queda, e aplicada uma haste de 30 centímetros de comprimento, sendo fixada na sua extremidade uma antena. Na ogiva da granada foi substituída a espoleta Schrapnell por uma comum, devido ter a primeira inconveniente para esse gênero de trabalho e a segunda, ser munida de uma pequena mola de detona, ao chocar-se contra um corpo estranho.
Feitas as modificações, foram realizados testes, na linha de tiro da Vila Militar, onde, lançadas de uma altura de dez metros, na posição horizontal, alinhavam-se, descendo verticalmente, alcançando o objetivo desejado.
Kirk e Darioli retornam com a munição e também em companhia do competente mecânico da aviação, o italiano Zanchetti sco, para suprir as necessidades de manutenção das aeronaves.
No dia 04 de janeiro de 1915, foi realizado o primeiro voo, que durou um pouco mais de uma hora e ocorreu na área de Porto União, sobre os rios Iguaçu e Timbó. O despreparo e a falta de conhecimento das coisas do ar levaram os pilotos a se enganarem quanto às condições atmosféricas em terra e no ar. Era 19 de janeiro, traídos pelo forte calor que fazia em terra, partiram para uma missão oficial de reconhecimento e numa altitude de 2.200 metros. Com uma temperatura abaixo de zero, ambos sofreram muito, pois não estavam preparados, com agasalhos compatíveis com o terrível frio.
A aviação havia cumprido suas primeiras reais intervenções na zona em operações de guerra.
O campo de Porto União da Vitória foi ampliado para 400 metros, os três aeroplanos estavam em condições de voar: o Morane Saulnier tipo “Parasol”, do Exército, com motor 90 HP, batizado por Kirk com o nome de “General Setembrino”, e mais dois Morane Saulnier, do mesmo tipo, um de 80 HP e outro de 50 HP, batizados de “Iguassú e Guarany”, todos testados e devidamente preparados para serem utilizados, tanto em operações de reconhecimento como de bombardeio, se bem que só no “Parasol” havia sido instalado um dispositivo especial para o lançamento de bombas.
Exatamente foi com o “Parasol” que o tenente Ricardo Kirk se acidentou, no dia 25 de fevereiro, ao empreender o derradeiro voo de teste, ao redor de Porto União da Vitória. O aviador saiu sem ferimentos, mas o avião ficou completamente inutilizado.
Apenas dois aviões restavam para a missão aérea. Um com o motor de 80 HP e outro de 50 HP, ambos diferentes do Morane Saulnier, com asa “Parasol” com que fora acidentado.
Chegou o esperado dia 1º de março de 1915. O piloto italiano Ernesto Darioli levantou voo com o Morane Saulnier de 50 HP, com motor Lê Rhône, da pista de Porto União da Vitória, às 12h10, com destino a Santa Maria, conforme planejado e combinado.
O piloto militar, Ricardo Kirk, decolou com o Morane Saulnier de 80 HP, às 12h20, dez minutos depois de Darioli, quando ainda se avistava no horizonte o avião do italiano. A diferença de 10 minutos foi dada por causa da maior potência do motor, para que assim chegassem juntos ao destino planejado.
O aviador Ernesto Darioli retornou após uma hora e dez minutos de voo, portanto às 13h20. Explicou que, após a decolagem e ao subir para 300 metros, um pouco além da estação de São João, que fica a cerca de 60 km de Porto União, a temperatura baixou bruscamente, e um forte vento começou a bater na direção contrária. Além disso, para piorar a situação, foi surpreendido com falhas constantes no motor.
Diante do perigo iminente, acossado pelo vento e temendo uma pane no motor, executou as manobras para o regresso, e foi nesse momento que percebeu que havia perdido o rumo da estrada de ferro; era o único ponto de referência que tinha na região das matas espessas. Recorreu ao uso da bússola e, depois de trinta minutos de voo sobre os pinheirais, conseguiu avistar o curso do rio Iguassú e, com muita dificuldade, aterrissou na pista de União. No hangar, o motor do avião de Darioli foi desmontado e constatou-se a falha existente. Kirk não havia retornado e, sem noticias, a tensão era geral. O General Setembrino, preocupado com a situação, enviou um telegrama ao General Caetano Faria, Ministro da Guerra, explicando detalhadamente o que estava acontecendo.
Enquanto isso, Kirk ou a voar rasante, à procura de um trecho de terra livre de obstáculos e satisfatoriamente plana, para o pouso. Ao tocar a ponta da asa esquerda na copa de um pinheiro, o avião perdeu o controle e acidentou-se.
A espera de notícias era grande, e a angústia terminou às 16 horas, quando da Estação de Nova Galicia, o Subdelegado de Polícia de General Carneiro ou o seguinte Telegrama:
“GENERAL SETEMBRINO PORTO UNIÃO O AEROPLANO CAHIO NO KILOMETRO 42 ESTRADA DE PALMAS COLONIA GENERAL CARNEIRO PT AVIADOR MORTO PT AGUARDANDO RESPOSTA PT”
Logo em seguida, o General Fernando Setembrino de Carvalho recebeu outra mensagem do Sr. José Tesserolli, da Colônia Jangada, confirmando a notícia do acidente e que havia colocado guarda ao corpo do piloto.
O Chefe do Estado Maior, o Capitão José Osório, deu instrução para a retirada do corpo de Ricardo Kirk do avião, mesmo antes da chegada do destacamento oficial, pois o relógio registrava 20 horas. O Sr. Ricardo Pohl, feitor da turma de conservação da estrada, morador no km 33, ao lado do carroceiro Sr. Miguel Chaikoski, numa carroça fizeram o translado do corpo para a casa do Sr. José Tesserolli, comerciante no km 36,5, da antiga estrada União a Palmas. Nas proximidades do o do Jangada, o destacamento militar encontrou a comitiva que se dirigia à casa comercial do Sr. José Tesserolli, onde foi improvisado um caixão, a seguir colocado numa carroça puxada por quatro cavalos, tendo na boleia o carroceiro, o Sr. Miguel Chaikoski, que saiu do Jangada às 02 horas da madrugada para Porto União.
O carroceiro, o Sr. Miguel Chaikoski, chegou a Porto União da Vitória, às 10 horas, sendo conduzido o corpo do Tenente Aviador Ricardo João Kirk para a Igreja Matriz, onde foi velado e o cortejo conduzido para o cemitério público, no qual foi sepultado, na mesma fila dos soldados do Capitão João Teixeira de Matos Costa. O Sr. Ricardo Pohl transportou, de carroça, para Porto União da Vitória, o avião acidentado, entregando o material ao comando do Quartel General, analisado o material que restou e enviado para o Aero Clube Brasileiro, que, reconstruído, serviu para a formação dos primeiros pilotos brasileiros.
No dia 04 de março de 1915, por decreto, o militar aviador Tenente Ricardo João Kirk, foi promovido ao posto de Capitão “por atos de bravura”, pelo Ministro da Guerra.
O feitor, Sr. Ricardo Pohl, que transportou o avião e os destroços até Porto União, prestou a primeira homenagem ao aviador, colocando dois dormentes da Estrada de Ferro em formato de cruz, à beira da Estrada Estratégica União da Vitória a Palmas, na altura do km 42, onde aconteceu o primeiro acidente fatal da aviação militar brasileira, em ações de guerra. Na cruz, uma inscrição feita à mão, com uma faca, entalhou os seguintes dizeres:
“AQUI FALECEO DE DESASTRE O AVIADOR KAP. RICARDO KIRQUEN – 1 DE MARÇO DE 1915”
Monumento conhecido como “Cruz do Aviador”, construído pela Prefeitura do Município de General Carneiro, Estado do Paraná. Construção de uma estrutura de concreto armado, simbolizando o avião de Ricardo Kirk ao redor da cruz original. Inicialmente, constava a cruz de dormentes, erguida pelo Sr. Ricardo Pohl. Foi inaugurado por ocasião do III Simpósio de História Regional, promovido pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (Fafiuv/Unespar) de União da Vitória, no dia 05 de outubro de 1980. Em 10 de março de 2002, o comando de Aviação do Exército erigiu no local um busto em bronze do aviador.
Por iniciativa da Academia de Letras Vale do Iguaçu, a ALVI, e da Prefeitura Municipal de Porto União, Estado de Santa Catarina, foi construído e inaugurado no dia 14 de setembro de 2007, nos jardins do Cemitério Municipal de Porto União, um Marco em homenagem ao Capitão Kirk, contendo uma placa alusiva a sua missão no Contestado, uma vez que seus restos mortais repousaram, de 03 de março de 1915 até 24 de outubro de 1943.
No dia 24 de outubro de 1943, os restos mortais foram transladados de Porto União para o Rio de Janeiro, pelo Tenente Aviador Eudo C. Silva, acompanhado pelo mecânico Sargento Saldanha. Os restos mortais de Kirk, na época, repousaram na cripta antiga do Mausoléu dos Aviadores Militares, construída no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro, em frente ao túmulo do “Pai da Aviação”, Alberto Santos Dumont.
Em 1996, foram transladados seus restos mortais para o monumento em sua homenagem, erguido no Comando de Aviação do Exército, em Taubaté, estado de São Paulo.
No vértice nordeste do Campo dos Afonsos existe uma colina denominada Ricardo João Kirk, em homenagem ao bravo precursor da Aviação Militar.
No céu do Contestado, onde começou a História da Aviação Militar Brasileira, não se ouve mais o ronco dos motores dos aeroplanos Morane Saulnier, mas fica no imaginário um verdadeiro ballet do vaivém dos aviões que cruzavam os ares, deixando um rastro de um apaixonado pelas loucas máquinas voadoras que cortavam o ar, com mil movimentos e desenhavam um espetáculo ímpar de manobras aéreas, carimbando para sempre, com a vida, a luta pela paz.
Fato de relevância nacional e internacional, por tudo que representa para os aviadores de ontem, de hoje e de sempre, fez do tenente Kirk o escolhido para ser o Patrono da Aviação do Exército Brasileiro.
Porto União da Vitória, março de 2025.

Aluizio Witiuk é Professor Universitário, Membro da Academia de Letras do Vale do Iguaçu (Alvi) e Membro da Academia de Cultura de Curitiba (Accur).