Crônica: Ovos carimbados
Em Brasília, dezenove horas, e daqui para frente os ovos terão que ser carimbados. Incrédulo, ouço a notícia com tamanho baque que chego a duvidar até mesmo da autenticidade da Voz do Brasil. É que na minha cabeça e, talvez, na de duzentos e tantos milhões de brasileiros e brasileiras, o ato de carimbar, que envolve um golpe duro e firme sobre uma superfície plana, não favorece uma associação muito fácil ao objeto ovo, o qual de antemão sabemos não ser plano e, tampouco, receptivo para golpes duros e firmes.
A regra está publicada. É uma portaria do Ministério da Agricultura. Não deram ao ovo sequer a dignidade de ser carimbado por força de emenda constitucional. A situação é inusitada no meio político-jurídico, curiosa para ser mais preciso. Num cenário típico jamais se cogitaria a necessidade de doutrina específica para explicar a exegese da obrigação. Agora, porém, já é possível imaginar a Esplanada dos Ministérios dividida ao meio, com simpatizantes da carimbada de um lado e militantes da causa oval de outro. A Praça dos Três Poderes, coração da república, seria então ocupada por tropas da Força de Segurança Nacional, sempre prontas para neutralizar qualquer ameaça enquanto no plenário do Supremo Tribunal Federal se debateria, à luz de alguma doutrina europeia, a constitucionalidade da norma que liga as antagônicas palavras “ovo” e “carimbo”. Não há precedentes e não haverá Tribunal que seriamente decida levar a plenário tal enredo.
A dinâmica jurídica estabelecida para os ovos vendidos a granel revela também que a cúpula regulatória nacional claramente padece da falta de sensibilidade necessária para o ofício. Tome-se, por exemplo, os problemas gerados por tal diretriz diante da iminente e inafastável chegada da Páscoa. Muitas crianças, de todas as idades, gastam grande parte de março e das economias domésticas para comprar ovos, pincéis, tinta, cola colorida e papel crepom, tudo na esperança de materializar, em casa ou na escola, a tradicional sessão de pintá-los e recheá-los com amendoim doce. Terão tais analistas do serviço público federal levado tal fato em consideração? Penso que não. Corre-se agora o risco de a cestinha vir cheia de ovos mal pintados, carimbados industrialmente, com validade datada e sem nenhuma alegria.
De tudo, porém, o que mais chama a atenção é que em Brasília o corpo técnico regulatório desconhece por completo a dificuldade para se comprar um ovo. Se pensassem no assunto certamente não teriam editado a portaria. Comprar ovos é um ato complexo de muitas variáveis. Pode-se escolher pela cor, pela quantidade, pelo tamanho, pelo preço, por ser caipira, por ser orgânico, etc. Nesse cenário uma nova categoria, a dos ovos carimbados, equivaleria a complicar ainda mais o meio de campo, sem nenhuma função prática. Se cruzássemos as variáveis, então, o ruim ficaria pior e esse se tornaria o impossível, afinal uma análise doméstica que tentasse correlacionar carimbada, cor, tamanho, origem e preço do ovo acarretaria em intermináveis filas nos supermercados, queda no consumo, desestímulo à produção, recessão, demissões em massa, déficit fiscal, impeachment, estado de sítio, guerra civil, armagedon.
Isso tudo sem considerar que a nova regra mexe substancialmente com as idiossincrasias de mercado, ou seja, aquilo que toda gente faz enquanto compra um ovo. Vista por esse ângulo, a coisa fica complicadíssima, insustentável. É que, específicamente para o caso dos ovos, há um tipo de consumidor específico, o olfativo, aquele mesmo que em público, diante de um supermercado lotado a lhe servir de plateia, dá-se ao trabalho de cheirar obstinadamente os ovos, um por um, várias vezes, até se convencer de que no conjunto não haverá mais do que gemas e claras a lhe esperar. Diante desse consumidor neurótico, adicionar um carimbo num ovo equivaleria lhe roubar a sua mais fina arte, sua própria obsessão ou histeria. Consultório e prozac, por certo.
Com tais pensamentos, saio do eixo monumental e entro nas quadras residenciais. Em Brasília, dezenove horas. A regra está publicada, uma portaria do Ministério da Agricultura. Nenhum tribunal haverá de levar a sério tal enredo, mas está valendo. Algum lobista conseguiu intervir e convencer o governo a prorrogar a vigência para setembro. A Páscoa está salva, a independência não. Chove muito e preciso comprar coisas para o café da manhã do dia seguinte. Paro no mercado, pego pão, queijo e presunto, mas estaco diante da prateleira de ovos. Ali uma senhora os cheira obstinadamente. Aparentemente todos bons. Ela me vê e, sem saber o que fazer diante de mim, começa uma conversa despropositada. O preço está bom, diz. Penso na neurose, na crônica que se ali se escreve, na recessão, na guerra civil e no possível armagedon. Ensaio uma cara de desconfiança para, em réplica, perguntar-lhe: o preço até que está bom, mas a senhora por um acaso conferiu se o ovo está carimbado?

Fernando Perizzoli é professor e Advogado, tendo atuado por mais de dez anos no ensino superior em União da Vitória e Porto União. Além disso, lecionei na Universidade Federal de Santa Catarina, na Universidade de Coimbra (PT) e na Universidade de Mumbai (Índia). Fui consultor da Fundação Oswaldo Cruz (RJ e DF). Exerci o cargo de Diretor Municipal no Poder Executivo de União da Vitória e o de Coordenador Jurídico na Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, em Brasília. Atualmente sou Professor de Direito Constitucional da UNIEURO (Brasília) e trabalho no Ministério Público do Estado de Goiás. Contato: [email protected]/@fernandodavidperazzoli.