Crônica: Na volta a gente compra

Domingo é um ótimo dia para ir ao circo com a família. Os trapezistas, os palhaços, os malabares, o globo da morte e os mágicos, sem falar naquelas mulheres incríveis e indecifráveis que se penduram a metros de altura só pelo cabelo, todos são atrações que arrancam sorrisos até de gente chata. Na modorra natural dos pomerigios dominicais, nada como uma programação de felicidade garantida, carimbada e fácil para assistir, como o circo. Só que no domingo ado algo diferente aconteceu, pois ao decidir que iríamos ao circo entendi de pronto que, enfim, eu realizaria um desejo há décadas esperado, a tão sonhada “volta”. Explico.

“Na volta a gente compra”, diziam meu pai e minha mãe quando eu queria comprar alguma coisa. O brinquedo? Na volta. O pirulito? Na volta. A bola? Na volta. Eles podiam discordar de tudo na vida, mas o “na volta” era uma certeza conjugal inabalável. Talvez os mais novos não saibam, mas para mim e para uma geração inteira tudo sempre seria comprado apenas “na volta”, fato que na prática queria dizer “nunca mais”.

Claro que sabíamos disso, as crianças são sempre muito espertas, captam os sentidos no ar. A coisa é que dentro de nós pequenos mantinha-se de qualquer forma acesa a chama da esperança sobre o retorno prometido. ávamos o dia, o final de semana, a viagem e o eio enganados com o “na volta a gente compra”, até ouvir um irremediável “agora já estamos muito longe” ou um “vixe, já fechou”. Fato é que nunca voltávamos.

Tais crianças, contudo, crescem e se vão pela vida. Elas se formam na universidade, adquirem trabalho, ganham salário, formam suas famílias e, entre tantas outras coisas que costumam acontecer, em algum momento olham para si mesmas e se entendem como independentes. E é aí que o jogo começa a mudar, ou seja, é aí que a tão falada “volta” começa a ser trilhada. Por isso que naquela tarde idealizei a ida ao circo, a ponto de imaginar-me comprando quantias pantagruélicas de churros, pipocas, refrescos, refrigerantes, cachorros-quentes e algodão doce, além, claro, daqueles palhaços enfiados em grandes cones e de cones minúsculos com a nossa foto neles enfiada, quase sempre desfocada.

Só que não me avisaram que o circo mudou. Não falo do fato de não mais haver animais, o que já sabia. Até aí tudo bem. Porém, um circo sem churros e palhacinhos em cones, ah não, isso já é demais. E foi bem nesse que fui parar. Nada de gente a vender cachorros-quentes e algodão doce. Até a maçã do amor, ontologicamente detestável, não estava lá. O espetáculo rolava e as tais mulheres incríveis e enigmáticas voavam pelos ares presas pelos cabelos, mágicos serravam e grudavam as cabeças de suas assistentes, palhaços caiam tombos, malabaristas faziam girar chapéus, bolas, massas e bambolês. Tudo indo muito bem, como deveria ser. O único problema era eu, incrédulo que estava diante da inexistência de coisas inúteis e nada saudáveis que eu queria tanto comprar na tão esperada “volta”. Fiquei arrasado.

Na saída, porém, uma lufada de esperança chegou a tocar meu rosto. Um senhor me abordou e perguntou se eu gostaria de comprar uma foto da família, no circo. Perguntei como seria. Ele disse que tiraríamos uma foto com um palhaço e que eles a mandariam para mim por email, ou seja, nem impressão havia. R$ 25 reais, era o preço. Olhei então para aquele circo e tive uma ideia, uma coisa que poderia de alguma forma me conectar com as emoções de décadas atrás, ainda que de um jeito estranho. Falei então ao vendedor que queria a foto, mas que antes eu iria comprar um açaí e um sanduíche natural. Pegamos então a primeira saída e fomos direto para a casa, sem açaí, sem sanduíche natural, sem fotos, sem churros e sem palhacinhos em cones. Enquanto dirigia para a casa, pensei: “Não tem problema Fernando, na volta a gente compra”.

Fernando Perazzoli é professor e Advogado, tendo atuado por mais de dez anos no ensino superior em União da Vitória e Porto União. Além disso, lecionou na Universidade Federal de Santa Catarina, na Universidade de Coimbra (PT) e na Universidade de Mumbai (Índia). Foi consultor da Fundação Oswaldo Cruz (RJ e DF). Exerceu os o cargo de Diretor Municipal no Poder Executivo de União da Vitória, de Coordenador Jurídico na Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, em Brasília e de de Assistente para Probidade sitrativa e Curatela do Patrimônio Público junto Ministério Público do Estado de Goiás. Atualmente é Professor de Direito Constitucional da UNIEURO (Brasília) e Consultor da UNESCO/Brasil. Contato: [email protected]/@‌fernandodavidperazzoli.

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