CRÔNICA: Coragens

Escrevo no plural mesmo – coragens – porque não há de ser uma só. Para viver é preciso muitas e, pior de tudo, até hoje não se tem notícia de qual seja a receita para fabricá-las. O que eu não imaginava naquela tarde na padaria, porém, é que eu seria testemunha do cumprimento de uma delas. Jóca, menino de seis anos cujo nome provavelmente é Joaquim, estava parado a um metro do balcão repleto de pirulitos, balas, chocolates e todas aquelas coisas coloridas e muito doces que apenas balcão de padaria consegue ter. Só que havia algo de diferente ali, algo que fugia completamente do comportamento esperado para uma criança da idade. O que se ava é que ele olhava fixamente para o Halls preto e, sabíamos todos ao redor, estava prestes e cumprir uma coragem (como disse Clarice Lispector no belíssimo texto “As Águas do Mar”). Antes de falar sobre o que Jóca fez, porém, cabe uma outra história.

CRÔNICA: Coragens

Foto: freepik

Certa vez fui Professor de uma aluna muito dedicada, extremamente habilidosa com as regras processuais e conhecedora como poucas do labirinto normativo que é o Código Civil. Mais que isso, falava francês perfeitamente e, pontue-se, sonhava em um dia ir para Paris. Quem sabe lá morar, dizia. Ao final do ano letivo foi feita uma campanha entre alunos e professores para arrecadar dinheiro, um presente para ela por toda dedicação e vivacidade com que tocava a vida e falava de sonhos. Toda gente contribuiu e eis que apareceu o montante para a tal viagem. Entregamos tudo para ela. ada a alegria, porém, ela chegou aos prantos na sala dos professores, devolveu todo o dinheiro e se foi. Dias depois, encontrei-a ao acaso, fora do campus. Conversamos um pouco e ela chorou muito, o que fez ao me explicar que, mesmo com todas as condições à mão, não tinha coragem de viver o sonho, tendo preferido as certezas do dia a dia às possibilidades que só Paris poderia lhe proporcionar. Achava melhor fazer concurso público, qualquer um, disse-me. Desde a nossa última conversa muitos anos se aram, até que recentemente me contaram do casamento, do divórcio, do fato de ela não exercer qualquer ofício relacionado ao direito, não ter sido aprovado em concurso algum e, mais complicado, da volta à casa materna para dar conta de criar dois filhos e comprar remédios para ansiedade e depressão.

Talvez seja desmedido pensar que ao não querer realizar um sonho a ex-aluna tenha descambado num divórcio e na depressão. Não sei o que se ou ali e, mesmo que fosse o analista dela, os significados só a ela pertencem. A história permite, contudo, pensar algo sobre a coragem, sobre a importância de tê-la e, mais ainda, de cumpri-la. Que todos temos que enfrentar os desafios da vida, isso é uma verdade, das poucas e irrefutáveis faladas por aí. Tal não significa, porém, que seja igual para toda gente. Claro, tem aquelas pessoas com muitas condições, aquelas com maior desenvoltura e, sejamos francos, há até mesmo quem seja tão leve a ponto de ar por tais momentos decisivos como se eles fossem de diminuta relevância, uma coisa qualquer. Não há, de qualquer forma, quem possa viver sem tais confrontos.

Podemos sustentar que o meio em que vivemos e as pessoas com que convivemos são grandes fatores para nossas decisões, não há dúvida. Sobre isso Contardo Calligaris, o famoso psicanalista (e cronista!), escreveu algures que não raro escolhemos a ar a vida com alguém que podemos responsabilizar pelos nossos fracassos, pelas desistências dos nossos sonhos. A isso complementa que as análises revelam, porém, ser a agem ao ato sempre ato individual, ou seja, a coragem pode até estar sustentada por fatores externos, mas, no fundo, será tão somente o indivíduo que poderá decidir e vivê-la, ou não.

Por essa razão é que Jóca, naquela tarde na padaria, impactou tanto. Foi uma grande lição. O Halls preto é, sem dúvida, o mais forte, o que faz arder a boca. Ele está anos-luz à frente de qualquer bala de cereja, menta ou tutti-frutti. Escolhê-lo sozinho e prová-lo, aos seis anos, é sem dúvida uma agem ao ato, é o cumprimento de uma coragem. Naquela tarde o menino desejava avidamente o drops, embora não se saiba a motivação. Só que experimentá-lo era para ele se colocar além da fronteira do que lhe era seguro, era ousar viver aquilo que ele ainda não conhecia. Se Joaquim vai um dia viajar para outro continente em busca de seus sonhos, se vai casar com alguém que lhe prive da experiência, se vai ser concurseiro aleatório ou se vai fazer outra coisa qualquer, certo estou que não saberemos. Naquele dia, contudo, ele avançou o metro que o separava do balcão e agarrou com força aquele Halls preto, para experimentá-lo, sofrê-lo e, logo em seguida, entre caretas e engasgos, cuspi-lo com toda força. Pouco importava, pensamos todos, a lição estava dada, ele havia cumprido uma coragem.

Fernando Perazzoli é professor e Advogado, tendo atuado por mais de dez anos no ensino superior em União da Vitória e Porto União. Além disso, lecionei na Universidade Federal de Santa Catarina, na Universidade de Coimbra (PT) e na Universidade de Mumbai (Índia). Fui consultor da Fundação Oswaldo Cruz (RJ e DF). Exerci o cargo de Diretor Municipal no Poder Executivo de União da Vitória e o de Coordenador Jurídico na Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, em Brasília. Atualmente sou Professor de Direito Constitucional da UNIEURO (Brasília) e trabalho no Ministério Público do Estado de Goiás. Contato: [email protected]/@‌fernandodavidperazzoli.

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