Crônica: Bricolagem de insignificantes

Se o Coronel Aureliano Buendia, famoso personagem de Gabriel García Marquéz, muito anos mais tarde haveria de recordar o dia em que o pai o levou para conhecer o gelo, minha filha – ah, com certeza – haverá de recordar o dia em que eu a levei para conhecer Paul McCartney. O problema é que conhecer um Beatle pessoalmente é algo que, para mim, se resume a três possibilidades: sorte, viagem para uma Liverpool dos anos sessenta ou sermos ambos, Paul e eu, convidados para uma entrevista no programa do Pedro Bial. Das três, a viagem para Liverpool parecia naquela tarde a mais fácil de se conseguir. Nem por isso desisti da ideia.

Mal saímos de casa, no entanto, o pneu furou. O sol estava escaldante e, enquanto eu providenciava a troca, deixei minha filha sentada à sombra de um jambeiro, onde ela ficou alimentando arinhos com os frutos vermelhos que conseguia colher. Acho que poucas vezes a vi tão feliz. Meia hora depois, conseguimos continuar viagem até o local onde McCartney estaria, só que, ainda no caminho, outro incidente nos tomou um tempo considerável. Eis que havia na rua uma grande manifestação de indígenas! Um pouco espantado, errei o caminho e parei com o carro muito próximo ao que parecia ser a execução de uma dança ancestral. Entendi de pronto que havia atrapalhado algo muito importante e que, como consequência, os indígenas então cantavam ao redor do nosso carro, com seus arcos e flechas apontados para mim. Nada de mais se ou, mas eu fiquei muito assustado, com medo de a situação evoluir e chegarmos a algum incidente. No banco traseiro e desde sua cadeirinha, porém, minha filha estava eufórica, vibrante, contagiada pelas cores, ritmos e movimentos que se avam no lado de fora. Mais uma vez, retomamos viagem rumo ao local onde supostamente encontraríamos o famoso artista. Diz o ditado popular, porém, que nada é tão ruim que não possa piorar. Foi exatamente o que aconteceu, pois houve um assalto numa agência bancária nas imediações e acabamos às voltas com um tiroteio, tremendo corre-corre, muitos policiais nervosos com armas em punho e, para coroar, um final cinematográfico com a prisão de todos os assaltantes. A cena hollywoodiana era imensa e, às voltas com todas aquelas viaturas, ficamos parados por quase duas horas na rua, sem poder tirar o carro do lugar até que a perícia terminasse o trabalho de coleta de provas ali perto. Minha filha aproveitou então para conversar com os policiais e bombeiros, os quais prontamente mostraram a ela o interior das viaturas e das ambulâncias do SAMU. Chegaram até mesmo a ligar a sirene, a pedido. Ela amou, especialmente porque crianças têm uma iração única por viaturas e sirenes.

Sair com uma criança de quatro anos para a rua, disposto a conhecer Paul McCartney é algo bastante desafiador. Só que o aniversário da pequena coincidia com a chegada de um Beatle original na cidade. Precisávamos estar lá pois, na minha concepção, qualquer pai que se dedique a transmitir boas memórias afetivas pararia tudo e correria com a filha a tiracolo para ver o cara que canta Yellow Submarine, óbvio. O que se coloca em questão numa situação dessas é a possibilidade de enriquecer ainda mais o Baú de Memórias Afetivas, que nada mais é do que aquele acervo incrível de recordações que cada um de nós guarda lá no lugar mais profundo e protegido da alma. São as lembranças que nos salvam, sempre. No caso da minha filha, certo é que chegará o tempo em que a criança de hoje – assim como foi para todos nós – crescerá e ará por momentos de dificuldade, angústia, ansiedade… sabemos bem do que se trata, é o desafio das mudanças, é o primeiro amor que vem e que se vai, é a troca de escola, é o vestibular, é ir morar sozinha, é a falta de grana, é uma doença na família, é um amigo que partiu antes do esperado, são os erros, os acertos, as escolhas e os caminhos que se bifurcam. Tudo isso demanda que haja em algum lugar de nós uma boa reserva de memórias afetivas, uma luz. É o tal baú, do qual podemos sempre sacar pequenas lembranças capazes de, na bricolagem de insignificantes, compor um significado qualquer, único e incrível que nos leve adiante.

Ter dado a ela a experiência de ouvir o próprio Paul McCartney lhe cantar algo como “Helter Skelter” era um plano para enriquecer ainda mais o baú de lembranças. Só que diante de tudo que se ou, acabou que não o vimos e não o escutamos falar nem mesmo um mísero Hey Jude. Paciência, ficou para uma próxima oportunidade. Vida que seguiu e, no jantar, cantamos parabéns com amiguinhas que vieram para celebrar o aniversário. Entre bolos e docinhos, alguém teve a ideia de perguntar para minha filha o que ela havia feito no dia. Disse ela, então, que havia alimentado arinhos com jambo da árvore, que havia visto indígenas dançarem com arco e flecha ao redor do carro, que havia visto a polícia dar tiros para prender um ladrão e que até haviam ligado a sirene quando ela pediu. Disse também que aquele havia sido o dia de aniversário mais divertido que ela teve (no caso, era o quarto). Fiquei muitíssimo feliz, sentindo-me um super-herói da paternidade e certo de que o dia havia valido para a eternidade. Aprendi que talvez seja disso que as grandes memórias são também compostas. Depois de tudo e muito cansados, fomos ver algo na televisão. No programa, Pedro Bial entrevistava Paul McCartney. Foi legal, mas fiquei um pouco triste pelos dois: mal sabiam as boas histórias que perderam ao não nos convidar.

Fernando Perazzoli é professor e Advogado, tendo atuado por mais de dez anos no ensino superior em União da Vitória e Porto União. Além disso, lecionei na Universidade Federal de Santa Catarina, na Universidade de Coimbra (PT) e na Universidade de Mumbai (Índia). Fui consultor da Fundação Oswaldo Cruz (RJ e DF). Exerci o cargo de Diretor Municipal no Poder Executivo de União da Vitória e o de Coordenador Jurídico na Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, em Brasília. Atualmente sou Professor de Direito Constitucional da UNIEURO (Brasília) e trabalho no Ministério Público do Estado de Goiás. Contato: [email protected]/@‌fernandodavidperazzoli.

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