CRÔNICA À CRÔNICA

Sei que não é possível, mas vou tentar. Em pensamento estou longe e tudo que tenho em mãos é uma caneta, um papel e o somatório de todos os meus significantes. Estou só e sou tocado pela vontade de escrever. É a partir disso que dispararei minha verborragia para um trabalho inútil: hoje vou redigir uma crônica. Fecho os olhos para me concentrar e vejo um início. Imediatamente começo a recolher palavras. Primeiro os adjetivos, óbvio. Num só instante vêm em mente e separo a um canto “desafiadora”, “leve” e “aprazível”. Agrego ao acervo “instigante”. Reservo então “delicada” e “atenciosa”, deixando também à mão “responsável” e “inteligente”. Sem direito a contraditório, surgem os advérbios – termos necessários à crônica para a crônica. “Muito” e “sempre” de pronto se apresentam para o trabalho, embora não tenha eu certeza se é melhor alterná-los ou empregá-los juntos, eis que, sendo a escrita da crônica “muito e sempre desafiadora”, “muito e sempre instigante”, entre outras coisas que são sempre “muito e sempre”, não pretendo comprometer a estilística da redação com um vício de linguagem, embora tenha acabado de o fazer. Enfim… é hora dos substantivos, mas curiosamente eu só consigo pensar em três, ontologicamente ela: “texto”, “vida” e “literatura”. Não posso negar que “desafio” e “prazer” também eram propostas, mas, além de já terem se adjetivado linhas atrás, a escrita da crônica, que é puramente desafiadora, consegue ser também prazer sem deixar de ser desafio, e aí eu me confundo nas classes. De qualquer forma, o trabalho de escrita vai assim parecendo mais fácil. Até penso até que vou conseguir. Engano. Procuro mesmo é disfarçar, pois chegará o momento dos verbos, quando precisarei pinçar aqueles que perfeitamente dirão as ações e os estados do que se ará na crônica. Tarefa difícil. Tento adiar e me distraio um pouco com os artigos, embora eu saiba de antemão que com eles não há escolha, pois jamais conseguirei escrever “a” crônica neste mundo onde existem “as” crônicas. Penso então nas preposições. Não por imposição, mas por puro deleite, confesso. É que preposição é a classe morfológica essencialmente desafiadora e apaixonante. Uma preposição é a menor versão das contingências da vida, pois é a palavra, simples e invariável, que quando bem empregada liga dois termos de uma oração, estabelecendo relações entre eles e permitindo que se produza um sentido totalmente novo e não imaginado. Se isso não representa a vida que há por aí e que numa crônica qualquer pode vir-a-ser, como então dizê-la? É assim que, no devaneio e na brincadeira, pego os acontecimentos e com eles me permito imaginar “ante”, “para”, “per”, “perante” e “por” uma crônica, embora eu anseie sem um instante de sossego pelo momento em que direi que estou “com” ela em mãos, escrita e publicada. Preciso, em verdade, colocar os pés no chão. É chegada a hora dos verbos e com seu prenúncio é também chegada a hora de uma confissão, posto que deles não tenho medo por imaginar que não conseguirei escolher algum dentre os poucos que conheço. Ah, isso não! Ocorre que desde o momento em que ousei escrever uma crônica à crônica eu soube que o único verbo para tal estilo literário é verbo ser, ou seja, a crônica é. Todo o resto são meras palavras que adocicam, mas que não a constituem. Ela é o desenrolar da vida, nas suas vicissitudes, pornemeores e silabadas de todos os dias. A crônica já é antes mesmo de que algumas palavras juntas venham a sê-la. Até as preposições, que ousam mudar os sentidos, sabem disso de antemão. E somente isso basta para eu confirmar o que desde o início já sabia, que esta empreitada que ousei tentar foi inútil e que toda a bricolagem serve apenas para o registro do imaginário, nunca para a crônica. Você não precisa fazer um curso de redação, comprar a última versão do dicionário, ser amigo de um grande escritor ou ler vinte e cinco livros de teoria para saber o que isso significa. Lê-las basta, a qualquer tempo… e entenderá.

Fernando Perazzoli é professor e Advogado, tendo atuado por mais de dez anos no ensino superior em União da Vitória e Porto União. Além disso, lecionou na Universidade Federal de Santa Catarina, na Universidade de Coimbra (PT) e na Universidade de Mumbai (Índia). Foi consultor da Fundação Oswaldo Cruz (RJ e DF). Exerceu os o cargo de Diretor Municipal no Poder Executivo de União da Vitória, de Coordenador Jurídico na Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, em Brasília e de de Assistente para Probidade sitrativa e Curatela do Patrimônio Público junto Ministério Público do Estado de Goiás. Atualmente é Professor de Direito Constitucional da UNIEURO (Brasília) e Consultor da UNESCO/Brasil. Contato: [email protected]/@‌fernandodavidperazzoli.

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